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É comum ouvirmos frases como “quero ser tudo o que meus pais não foram” ou “nunca farei com meus filhos o que fizeram comigo”. No entanto, para a surpresa – e por vezes frustração – de muitos, os anos passam e nos vemos repetindo justamente aquilo que juramos evitar. Por que, mesmo desejando ser diferentes, acabamos por reproduzir os mesmos padrões? A resposta, na perspectiva psicanalítica, não está na consciência racional, mas no inconsciente e nos mecanismos de repetição que nos habitam.


Freud, em sua vasta obra, abordou com profundidade o fenômeno da compulsão à repetição (Wiederholungszwang), uma tendência do sujeito a repetir situações psíquicas passadas, mesmo que sejam dolorosas ou disfuncionais. Esse conceito aparece de forma decisiva no texto “Além do Princípio do Prazer” (1920), onde Freud nota que o sujeito muitas vezes retorna, inconscientemente, a vivências infantis traumáticas não elaboradas, como uma tentativa de dominá-las psiquicamente.


A relação com os pais é o primeiro grande palco em que essas experiências se inscrevem. É com eles que estruturamos nossa primeira relação com a autoridade, com o amor, com o desejo e com a frustração. Os pais são, na linguagem freudiana, os primeiros objetos de investimento libidinal e, também, os primeiros alvos das ambivalências afetivas. Toda criança, em algum momento, ama e odeia seus pais. E, ainda que a consciência tente negar ou se distanciar, o inconsciente conserva essas marcas.


Quando dizemos que não queremos ser como nossos pais, geralmente estamos partindo de uma leitura consciente dos comportamentos que nos feriram ou incomodaram. No entanto, se esses afetos não foram verdadeiramente elaborados — ou seja, se não houve simbolização psíquica suficiente para transformá-los — eles permanecem ativos no inconsciente. Assim, o que não é trabalhado, retorna. E retorna pela via da repetição.


Ao nos tornarmos adultos, colocamo-nos frequentemente no lugar dos nossos pais, sem perceber. É como se o inconsciente dissesse: “se não foi possível resolver isso na infância, talvez agora, ao ocupar esse papel, eu possa compreender, dominar ou ressignificar o vivido”. Mas a armadilha está justamente aí: ao repetir, mantemos o circuito fechado da neurose, perpetuando os sintomas que tanto queríamos evitar.


Por isso, a análise é fundamental. O processo analítico nos permite identificar essas repetições, dar nome ao indizível e, sobretudo, criar novas possibilidades simbólicas. Não se trata de evitar ser como os pais por meio do esforço consciente, mas de compreender as raízes psíquicas que nos ligam a eles — e, muitas vezes, nos amarram.


Freud afirmava que onde havia id, deve advir o ego. Em outras palavras, a tarefa analítica é trazer à luz aquilo que está nas sombras, permitindo que o sujeito deixe de ser comandado por repetições inconscientes e passe a ter uma relação mais livre com sua história.


Repetir os erros dos pais não é um destino inevitável, mas é uma possibilidade concreta quando o sujeito se recusa a escutar o que seu inconsciente insiste em dizer. A mudança real, portanto, não vem do juramento de ser diferente, mas da coragem de revisitar aquilo que nos formou — para, então, escolher outro caminho.


Autor

John Fonsècca

 
 
 

A obra O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, é comumente associada à infância e à inocência, mas sob o olhar psicanalítico, ela revela camadas muito mais complexas do que aparenta à primeira vista. Por trás da linguagem simbólica e poética, encontramos um mergulho profundo nas estruturas do psiquismo humano — sobretudo nos conflitos entre o mundo infantil e o mundo adulto.


A jornada do Pequeno Príncipe pode ser interpretada como uma travessia pelo inconsciente. Cada planeta que ele visita representa uma faceta psíquica ou um arquétipo do comportamento humano: o rei (o desejo de controle e onipotência), o vaidoso (a busca por reconhecimento narcisista), o bêbado (a fuga da dor), o homem de negócios (a ilusão de que possuir é existir) e o geógrafo (o saber que não se arrisca). Esses personagens funcionam como representações simbólicas de mecanismos de defesa, fixações e formas de lidar com o vazio existencial.


O Pequeno Príncipe, por sua vez, encarna o sujeito em seu estado mais originário, próximo do isso (ou id), livre dos recalques típicos da estrutura adulta. Ele é movido pelo desejo, pela curiosidade e pela sensibilidade, características frequentemente abafadas no processo de socialização. Ao encontrar o aviador — o adulto que reaprende a escutar — temos o reencontro entre o ego racional e o conteúdo psíquico rejeitado: a criança interna.


O vínculo do príncipe com a rosa remete à primeira experiência de amor, repleta de ambivalência. A rosa é frágil, exigente e vaidosa — atributos que podem ser lidos como projeções da figura materna idealizada e, ao mesmo tempo, frustrante. A necessidade de cuidar da rosa e o sentimento de culpa por tê-la deixado expressam um conflito edipiano mal elaborado, onde o amor é entrelaçado com o sofrimento, e a separação gera angústia.


Já a raposa surge como um momento de elaboração simbólica do afeto. É ela quem introduz o conceito de laço e responsabilidade — aquilo que, em termos freudianos, poderíamos associar ao surgimento do superego como mediador dos impulsos e organizador dos vínculos sociais. A famosa frase “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” marca o início da internalização do outro como objeto amado e desejado, mas também como limite.


Por fim, a morte do Pequeno Príncipe pode ser compreendida não como um fim literal, mas como uma representação simbólica do retorno ao inconsciente, ou do movimento de sublimação — um atravessamento da dor e do crescimento psíquico. Ele parte, mas deixa no aviador (e em nós, leitores) um vestígio do que foi vivido: a marca de um afeto verdadeiro, que não se explica racionalmente, mas se sente no corpo e na alma.


Ler O Pequeno Príncipe à luz da psicanálise é um convite a reencontrar as partes de nós que foram caladas pelo tempo, reprimidas pela norma e esquecidas pelo adulto que nos tornamos. O livro não é, portanto, apenas uma fábula: é um espelho simbólico do nosso mundo interno, onde ainda ecoam as vozes da infância, o medo da perda e a esperança do reencontro.


Autor

John Fonsècca

 
 
 


Não há palavra no dicionário que nomeie um pai ou uma mãe que perde um filho. Essa ausência de nome talvez diga algo do indizível que é essa dor. Quando um filho morre cedo, o tempo se desorganiza. A ordem natural se desfaz. O futuro, que antes habitava aquela criança, se rompe de forma abrupta e cruel. E o que fica, muitas vezes, é o vazio. Um silêncio espesso, que nem sempre encontra lugar na fala, mas se inscreve no corpo, no cotidiano, nos gestos interrompidos.


Na escuta psicanalítica, o luto é compreendido como um trabalho psíquico — doloroso, solitário, mas necessário. Freud, em seu texto "Luto e Melancolia", nos ensina que o luto é o processo pelo qual o sujeito, aos poucos, se desprende do objeto perdido. Mas e quando o objeto perdido é um filho? Um pedaço de si, do próprio ideal, da esperança e do amor investido? Nesse caso, o luto escapa da lógica simbólica comum. Há um rompimento no registro do que poderia ser simbolizado.


Recentemente, um amigo muito próximo passou por essa experiência devastadora. Vi de perto o impacto dessa perda — não só nele, mas em tudo ao seu redor. A casa mudou de tom, o olhar perdeu brilho, o mundo pareceu minguar. Como psicanalista, muitas vezes me vejo diante da escuta de dores profundas. Mas ali, diante de um pai que perdeu seu filho, a teoria cede espaço à presença silenciosa. Não há técnica que dê conta de tanta ausência. Há, sim, a escuta — uma escuta que não oferece respostas, mas reconhece a falta, o rasgo, o buraco deixado pela perda.


A dor da perda de um filho não se supera. Ela se reinscreve na vida, de maneiras variadas. Alguns pais criam formas de manter viva a memória, outros se calam. Cada um encontra — ou não — uma maneira de elaborar o insuportável. A psicanálise não oferece promessas de cura, mas sustenta o sujeito em sua travessia. Permite que o sofrimento se diga, mesmo que aos poucos, mesmo que entre lágrimas, mesmo que em silêncio. O luto precisa de tempo, de escuta e de respeito.


Não há consolo suficiente para uma dor como essa. Mas há possibilidade de que, em algum momento, essa dor encontre palavras, contornos, e não precise mais ser carregada como peso absoluto. A memória do filho perdido pode então tornar-se parte da história, sem aprisionar o presente, sem paralisar o amor. E é nesse ponto que a psicanálise oferece sua contribuição mais delicada: ajudar o sujeito a viver, ainda que a perda jamais deixe de doer.


A dor não se apaga, mas pode, com o tempo e o cuidado, se transformar em um modo de seguir. Não como quem esquece, mas como quem escolhe continuar amando, mesmo com o coração faltando um pedaço.


Autor

John Fonsècca

 
 
 
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